domingo, 4 de novembro de 2018

Na neblina

por Perci Guzzo * 



Me pediu que escrevesse sobre icebergs. Juntos definimos o termo: massa de gelo flutuante que se desprendeu de uma geleira e que agora é levado pelo mar. Em seguida pronunciei “insel­berg”! Me perguntou o significado. Disse-lhe que iria pesquisar… Consultei Antonio Christofoletti, “Geomorfologia”, autor reco­nhecido sobre estudos do relevo no Brasil. Talvez tenha sido com ele que ouvi pela primeira vez o termo em uma de suas palestras quando cursava Ecologia na UNESP, em Rio Claro.

Aqui está! Inselberg é um relevo residual que apresenta forma de crista ou cúpula em meio a uma superfície plana. Trata-se de uma saliência na paisagem, resultado de erosão ou de soerguimento da crosta por atividade geológica. A Serra do Imeri, por exemplo, onde está o Pico da Neblina, a 2.995 metros de atitude, é uma montanha-ilha na vastidão da pla­nície amazônica. Na língua ianomâmi, o ponto mais alto do Brasil recebe o nome de “Yaripo”, cujo significado é “monta­nha do vento”. É no seu topo que anciões trocam de mundo e se entendem com os espíritos.

Inselberg não deixa de ter o mesmo sentido de iceberg: formas de rocha e de gelo que se projetam acima de uma superfície plana.

A face do Yaripo que dá para a Venezuela é vertical; um abismo que nos põe cientes da nossa pequenez humana. Qual é nosso tamanho para compreendermos e nos solidari­zarmos com nossos vizinhos? Do outro lado das escarpas do Escudo das Guianas, há também uma nação em crise, com seus problemas peculiares e civilizatórios. Envolto em nuvens que vêm e vão, nos píncaros da Neblina, nesses momentos da vida em que não se consegue enxergar um palmo à nossa frente, os próximos passos merecem atenção total. Ninguém sai vitorioso de guerras, a não ser a indústria armamentista e as nações que as fornecem.

Nos jardins de altitude são encontradas espécies raras e belas que ocorrem exclusivamente nessas geografias. É o que revelam expedições feitas nos últimos anos por pesquisadores brasileiros em locais de difícil acesso como as serras do Cabu­raí, Aracá e Imeri. Está previsto para 2019 o início das visita­ções guiadas pelos Yanomami ao ponto mais alto do Brasil.

Aqui no Centro-Sul temos as florestas nebulares. Pesquisas recentes dão conta que algumas espécies de árvores em condições de escassez hídrica no solo, bebem água das nuvens. Isto ocorre através da superfície das folhas. A água é conduzida pelos galhos e tronco até as raízes. É assim que riachos que nascem a mais de 1.500 metros de altitude permanecem perenes.

– Eu só pego o ar das montanhas. Eu adoro aqueles picos altos em Teresóplis.
– O Dedo de Deus.
– Picos. Pico Boulevard.
Esse pequeno diálogo entre Tom Jobim e Elis Regina an­tecede a belíssima gravação da balada jazz “Inútil paisagem”, feita em 1974 em plena ditadura civil-militar.

Na subida de Parati em direção a Cunha, atravessamos uma extensa neblina. Mata úmida repleta de bromélias, orquí­deas e canto de passarinhos. Nuvens finas e frias na estreita estrada percorrida pelo automóvel cansado. Logo depois o presente: vento fresco, céu azul, uma cachoeira e as primeiras araucárias.

Os dois índios xinguanos em pé na pequena canoa remam no mesmo sentido. A réplica da foto de Sebastião Salgado afixada na parede do meu quarto lembra-me todas as noites que o desafio é atravessar a neblina.

Dedico este artigo a Adjan Marques Lobo.


(*) Perci Guzzo é ecólogo e mestre em Geociências e Meio Ambiente.

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