sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Chico Mendes e Mário de Andrade

por Perci Guzzo * 



Mário de Andrade estabeleceu intensa correspondência com escritores e artistas. As cartas são parte importante de sua obra. O escritor paulistano faleceu em 1945; tinha apenas 51 anos. Chico Mendes havia nascido no ano anterior em Xapuri, no Acre. Mário navegou o Rio Madeira, no Oeste amazônico, em 1927, e conheceu a dura realidade dos seringais onde Chico viveu. Não trocaram cartas, é certo, mas dois poemas do autor de Macunaíma os aproxi­mam: “Descobrimento” e “Acalanto do Seringueiros”. O ambienta­lista também morreu jovem: 44 anos. Foi assassinado em sua casa em 22 de dezembro de 1988, às vésperas de Natal.

Nos próximos dias 15 a 17 de dezembro ocorrerá na pequena Xapuri o “Encontro Chico Mendes”, organizado pelo Conselho Nacional das Populações Extrativistas, como objetivo de honrar a memória do líder seringueiro, celebrar seu legado e firmar compro­missos para os próximos 30 anos.

Quando Mário de Andrade excursionou pelo Norte, o modo econômico que funcionava nos seringais era o sistema de “barracão”. O látex coletado a partir da sangria das seringueiras – árvore nativa da Amazônia (Hevea brasiliensis) – era depositado em armazéns onde residiam os seringalistas. Estes, em troca, forneciam os bens de primeira necessidade para as famílias extrativistas. A conta nunca batia nesse modelo de servidão, pois os seringalistas contabilizavam seus lucros e mantinham os seringueiros endividados.

A partir da década de 70 a política de ocupação da região amazônica se dava com a construção de extensas estradas. O centro do poder era ocupado pelos militares. Tinha início um modelo agrícola equivocado. Desmatamento, grilagem de terras e pecuária extensiva ameaçavam as comunidades amazônicas.

No interior do Acre surgia uma maneira pacífica de se opor à destruição dos seringais e dos castanhais: o “empate”. Grupos de traba­lhadores da borracha, desarmados, com mulheres e crianças, se posi­cionavam em frente aos madeireiros contratados pelos pecuaristas para derrubar a mata. Conversando com os peões e a polícia, que eram seus conhecidos, pois viviam na comunidade, cada frente de desmatamento era abandonada. Fortalecia-se o protagonismo de líderes locais e sur­giam os sindicatos rurais. Chico Mendes passou a ser jurado de morte.

Em 1985, com o início da redemocratização do país, eram criadas as primeiras reservas extrativistas no Acre. As Resex, como são chamadas, é um modelo de exploração dos recursos naturais que fixa o homem na floresta, retira seus produtos (borracha, castanha e peixes) sem desmata­mento e mantém a propriedade pública das terras. Opõe-se ao modelo sulista e sudestino que derruba a floresta e vende a madeira – muitas vezes ilegalmente – e ocupa as terras com gado e soja.

Atualmente são dezenas de reservas pela Amazônia onde a floresta é explorada em pé. Persiste o desafio de agregação de valor dos produtos extraídos, uma vez que devem ser contabilizados os diversos impactos positivos deste modelo, dentre eles a fixação do carbono na biomassa, a conservação da biodiversidade e a manutenção do regime de chuvas.

O feito de Chico Mendes é reconhecido internacionalmente. Nos dias de sua morte, lembro-me claramente, a grande mídia brasileira só repercutiu o fato dias depois que a notícia correu o mundo.
Mário de Andrade era interessadíssimo na questão da cultura e da identidade nacional. De sua viagem pelo Amazonas, seu projeto de es­crever sobre “o herói sem caráter” foi revisto e finalizado. Macunaíma foi publicado em 1928, portanto há 90 anos atrás. O poema de sua autoria, transcrito a seguir, não lhes parece um susto que liga toda essa história?

“Abancado à escrivaninha em São Paulo / Na minha casa da rua Lo­pes Chaves / De sopetão senti um friúme por dentro. / Fiquei trêmulo, muito comovido / Com o livro palerma olhando pra mim. / Não vê que me lembrei lá no Norte, meu Deus! Muito longe de mim, / Na escuridão ativa da noite que caiu, / Um homem pálido, magro de cabelo escorren­do nos olhos / Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, / Faz pouco se deitou, está dormindo. / Esse homem é brasileiro que nem eu…” (Descobrimento, Clã do Jaboti, 1927).

Imagens: 
Chico Mendes - Internet
Mário de Andrade - Enciclopédia Itaú Cultural


(*) Perci Guzzo é ecólogo e mestre em Geociências e Meio Ambiente.

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