sexta-feira, 17 de abril de 2020

O chamado que vem da terra

por Perci Guzzo * 




Mãos que lavoram. Mãos na terra para plantar, cultivar e colher. Mãos: extensão do coração. Há um chamado de cura que vem da terra.

A pandemia de covid-19 é o principal fato histórico dos últi­mos 50 anos, pelo menos, que sinaliza a vulnerabilidade do sistema capitalista perante as leis naturais. O grau de entropia (degeneração termodinâmica) no organismo planetário causado pelas constantes e bruscas alterações advindas das atividades humanas é tamanho que estaremos frequentemente suscetíveis a quarentenas daqui para frente. A mudança no clima como síntese da desordem provocada nos siste­mas naturais atinge o nível mais elevado de incertezas quanto à nossa sobrevivência e quanto à qualidade de nossa sobrevivência.

Não se trata de alarmismo. Para quem trabalha na área, acom­panha os fatos sob o prisma da ciência, do conhecimento dos povos originários e da observação empírica própria ou dos mais velhos, sabe que a terra, a água e o ar vêm sendo subjugados aos anseios merca­dológicos. Os recursos e os serviços naturais são finitos e jamais darão conta da volúpia de produção e consumo dos padrões atuais. Não há mais lugar para o desperdício de alimentos e a exaustão das terras sob o almejo de bater novos recordes de safras e dividendos. A fome e a doença de milhões não são externalidades da economia.

Como é possível nos acostumarmos, por exemplo, com a perda quase que completa de nossos rios e riachos no Estado de São Paulo com apenas dois ciclos econômicos (café e cana)? É essencial que grandes porções de áreas rurais de uma região metropolitana funcio­nem como um estoque de terras para futuros parcelamentos urbanos? É cômodo acompanhar o achatamento do sistema público de saúde frente à demanda aumentada de atendimentos por problemas car­diorrespiratórios quando a qualidade do ar piora? A paisagem natural deteriorada não pode se tornar algo indiferente aos nossos olhos. A natureza poluída e arrasada é a antipoesia, a antipintura.

Uma revolução protagonizada por minhocas, tatus, colêmbolos, inhames, macaxeiras, beterrabas e cúrcumas está em curso sob a terra. São seres cultivados e cultuados por mãos desimpregnadas de agro­químicos e agrotóxicos. Aqueles e aquelas que vêm se dedicando nos últimos anos a produzir e comercializar alimentos saudáveis e nutritivos possuem o condão da cura da Terra. Aqueles e aquelas que adquirem es­ses alimentos se reaproximam da vida na sua essência, pois nutrem uma cadeia alimentar sustentável. Deve ganhar escala as práticas agroecológi­cas a partir do discernimento do que é essencial e válido na vida.

“Se os frutos produzidos pela terra/ ainda não são doces e polpudos/ quanto as peras da tua ilusão/ amarra o teu arado a uma estrela/ e os tem­pos darão safras e safras de sonhos/quilos e quilos de amor” (Gilberto Gil).

Recentemente me integrei a uma comunidade que sustenta a agricultura (CSA). Ela integra aproximadamente 30 pessoas e famílias de Ribeirão Preto e Cravinhos. Um coletivo atento às fases do cultivo e do consumo de alimentos. Nos cotizamos, nos reunimos quando necessário, e participamos de mutirões de cultivo e aprendizado com os ciclos das plantas. Há outros modelos, pois conheço chácaras, sítios e assentamentos rurais na região que trabalham o solo com o propó­sito de criar junto com a natureza. Para isso é preciso conhecimento técnico e mãos laboriosas. Muitas mãos e muitos pés que se reconec­tam com o chão desnudo.

Também começam a surgir as fazendas e hortas urbanas. Nossas áreas verdes podem ter função produtiva – não necessariamente com fins comerciais. Áreas e terrenos “abandonados” aguardam as chuvas de sementes e as tenras mudas de legumes, folhosas, medicinais e frutas.O retorno à ruralidade e os passos em direção à renaturalização das cidades são os remédios para os males contemporâneos. Nós, seres urbanos, devemos migrar do hábito comensal (parasita) para o hábito mutualista. O supérfluo e o desperdício estão com os dias contados.

“Sou o chão que se prende à sua casa/ Sou a telha da coberta de teu lar/ A mina constante de teu poço/ Sou a espiga generosa de teu gado/ e a cer­teza tranquila ao teu esforço./ Sou a razão de tua vida”. (O cântico da terra, Cora Coralina). Este artigo é dedicado ao Sítio Santa Fé, Cravinhos, SP.


(*) Perci Guzzo é ecólogo e mestre em Geociências e Meio Ambiente.

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sexta-feira, 3 de abril de 2020

Desarmonias na natureza e a pandemia

por Perci Guzzo * 




Habitat. Termo da Ecologia que designa o local onde vive e sobrevive a população de uma determinada espécie. O habitat de muitas espécies de bactérias, vírus e protozoários são as células e os órgãos de animais silvestres ou de animais domesticados. Pode-se encontrar uma enorme comunidade de micróbios no intestino de um único cupim! Em condições naturais, os hospedeiros não são prejudicados, pois vivem uma interação benéfica com seu hospedado. Nós carre­gamos, por exemplo, uma flora e fauna microbiana benéfica em nossos intestinos que ajudam no processo digestivo. O problema se dá quando acontece o que chamamos de “ultrapassagem da barreira de espécie”.

Os coronavírus formam uma família com pelo menos 5 espécies. O gênero Alphacoronavirus possui uma espécie que causa a gastroenterite em cães e uma outra que causa peritonite infecciosa felina. Essas duas doenças não acometem os humanos. O gênero Betacoronavirus, no entanto, possui três espécies que resul­tam em doenças respiratórias para a população humana. São elas: a Mers-CoV que causa a síndrome respiratória do Oriente Médio, a Sars-CoV, responsável pela síndrome respiratória aguda grave, e a Sars-CoV2 que nos acomete neste momen­to com a doença chamada covid-19; um tipo de pneumonia seca.

A pandemia que enfrentamos neste momento tem causa ambiental e sanitária.

A perda de habitats por desmatamento é a principal causa da extinção de espécies. Além disso, o modo como substituímos os habitats naturais para ceder lugar à agropecuária, à urbanização e à industrialização é responsável por desequi­líbrios profundos nas relações entre as espécies. Por exemplo: para satisfazer nosso apetite por carne bovina, já transformamos o equivalente a uma África de florestas e savanas em pasto. A perda de biodiversidade genética, de espécies e ecossis­têmica é algo fabuloso e sem precedentes. Nós sequer conseguimos mensurar o tamanho das desarmonias que estamos provocando. Tresloucadamente vamos devastando! Os instrumentos de controle existentes não têm sido suficientes para prevenir, precaver, mitigar e compensar os impactos na natureza.

Voltemos ao âmago do artigo. Um exemplo clássico de ultrapassagem da barreira de espécie é do vírus Ebola. Estudos científicos demonstraram que em áreas recém desmatadas na África Ocidental a aparição do vírus em diversas espécies de morcegos é mais frequente do que em áreas preservadas. Tendo seus habitats des­truídos, os morcegos chegam até as fazendas e jardins das casas para se alimentarem de frutas. A proximidade do morcego com o ser humano se estreita. Uma pessoa ao morder uma fruta já visitada por um morcego, em que tenha havido o depósito de saliva do animal, não é difícil ocorrer o contato com o vírus. No morcego o Ebola é benéfico, mas no ser humano, a partir de mutações, tornou-se um agente patogênico letal. A doença se caracteriza por sangramento dos órgãos internos.

Nos mercados de animais vivos, “organizados” por nós para o comércio de carnes, muitas espécies que jamais estariam próximas uma da outra na natureza, ficam por longos períodos lado a lado. Nessas condições, os micróbios, algumas vezes, conseguem passar de uma espécie para outra, inclusive para o Homo sapiens. Em um novo hospedeiro, o vírus, a bactéria ou o protozoário, sofre mutações e se torna um agente patogênico. Esta é, até o momento, a causa mais provável para o aparecimento da pandemia da covid-19.

Se passarmos por essa, há pelo menos três medidas para controlar, pelo menos em parte, novas e severas pandemias. A ampliação do habitat humano deve internalizar os conhecimentos da Ecologia e da Biologia, entre outras áreas das Ciências Naturais e Humanas, para que deixemos no passado nosso incomensu­rável amadorismo no trato com a natureza. A regulação e fiscalização ambiental e sanitária da produção e do comércio de carnes devem ser revisadas e alçadas a um padrão seguro e sustentável. Por fim, torna-se inadiável uma alteração em nossa dieta exageradamente rica em proteína animal.

Agora, se quisermos, que nosso habitat seja apenas nossa casa e nos man­tenhamos em quarentena pelo resto de nossos dias, continuemos a ignorar ou fazer de conta que estamos agindo perante tudo o que vem sendo revelado pelos estudos científicos sobre a devastação que estamos provocando na Terra.

Eu desconfio que cuidar do planeta gera mais empregos e mais riquezas do que destruí-lo.

Namastê.


(*) Perci Guzzo é ecólogo e mestre em Geociências e Meio Ambiente.

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